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 EUCARISTIA, UM MILAGRE INTERIOR 

  UMA NOVA INTERPRETAÇÃO DA EUCARISTIA 

A instituição da Eucaristia constitui o maior mistério divino transmitido à humanidade, inaugurando uma nova Páscoa, na qual Jesus Cristo se tornou o “cordeiro" da celebração, oferecendo sua vida em remissão dos pecados de toda a Humanidade. Durante a Ceia Pascal e na véspera da sua morte, Jesus instituiu uma forma admirável de permanecer entre nós, em que o pão e o vinho se transformam na sua presença. A narrativa desta celebração, no decorrer da Última Ceia, é idêntica nos três Evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos, Lucas), mas divergindo no evangelista Lucas que acrescenta uma importante frase (fazei isto em memória de Mim) a qual poderá fazer toda a diferença.


  • Enquanto comiam, tomou um pão e, depois de pronunciar a bênção, partiu-o e deu-o aos seus discípulos, dizendo: Tomai, comei: isto é o meu corpo. Em seguida, tomou um cálice, deu graças e entregou-lho, dizendo: Bebei dele todos. Porque este é o meu sangue, sangue da Aliança, que vai ser derramado por muitos, para perdão dos pecados (Mt.26, 26-28).
  • Enquanto comiam, tomou um pão e, depois de pronunciar a bênção, partiu-o e entregou-o aos discípulos dizendo: Tomai: isto é o meu corpo. Depois, tomou o cálice, deu graças e entregou-lho. Todos beberam dele. E Ele disse-lhes: Isto é o meu sangue da aliança, que vai ser derramado por todos (Mc.14, 22-24) .
  • Tomou, então, o pão e, depois de dar graças, partiu-o e distribuiu-o por eles, dizendo: Isto é o meu corpo, que vai ser entregue por vós; fazei isto em memória de Mim. Depois da ceia, fez o mesmo com o cálice, dizendo: Este cálice é a nova Aliança no meu sangue, que vai ser derramado por vós (Lc.22,19-20).


O Evangelho de S. João (posterior) ignora este episódio, mas refere-se ao mistério eucarístico, muito antes da Última Ceia, no extraordinário discurso sobre o “Pão da Vida” (Jo.6,25-59), proferido por Cristo na Sinagoga de Cafarnaum, após o milagre da multiplicação dos pães e dos peixes, onde se afirma como alimento de vida eterna: “Eu sou o pão vivo que desceu do Céu. Se alguém comer deste pão viverá eternamente e o pão que hei-de dar é a minha carne pela vida do mundo... Se não comerdes a carne do filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós; quem come a minha carne e bebe o meu sangue terá a vida eterna e Eu ressuscitá-lo-ei no último dia, porque a minha carne é uma verdadeira comida e o meu sangue uma verdadeira bebida… Quem realmente come a minha carne e bebe o meu sangue fica a morar em Mim e Eu nele…” (Jo.6,51-56). Porém, o significado destas palavras (comer a sua carne e beber o seu sangue) é tão difícil de compreender que escandalizou os judeus presentes, levando mesmo alguns discípulos a considerar aquelas palavras tão insuportáveis que decidiram abandoná-lo: "Depois de o ouvirem, muitos dos seus discípulos disseram: Que palavras insuportáveis! Quem pode entender isto? Mas Jesus, sabendo no seu íntimo que os seus discípulos murmuravam a respeito disto, disse-lhes: Isto escandaliza-vos? E se virdes o Filho do Homem subir para onde estava antes? É o Espírito quem dá a vida; a carne não serve de nada: as palavras que vos disse são espírito e são vida. Mas há alguns de vós que não crêem… A partir daí, muitos dos seus discípulos retiraram-se e já não andavam com Ele" (Jo.6, 60-70).


Também nos primeiros séculos da Igreja católica, houve muita dificuldade em explicar este mistério, não sendo produzido nenhum texto oficial sobre a Ceia do Senhor. Segundo o especialista bíblico William A. Webster (The Church of Rome at the Bar of History, 2001), abordando esta polémica, os grandes "Padres da Igreja" antiga, nos seus escritos, revelam grande divergência na sua interpretação. Alguns deles, como Inácio de Antioquia (35/98) e Justino (100/165), têm uma visão literal do acontecimento da Última Ceia, sustentando que os elementos são transformados no corpo e sangue de Cristo. Pelo contrário, outros afirmam que os elementos do pão e do vinho são símbolos do corpo e do sangue de Cristo e que a sua presença é de natureza espiritual. Assim pensava Tertuliano (220), um dos maiores cristãos da antiguidade que, referindo-se ao discurso do Pão da Vida de S. João (Jo.6), afirma que Jesus falou em termos espirituais quando se referiu a "comer sua carne" e "beber seu sangue", não desejando que isso fosse entendido de forma literal, mas significando apropriar-se dele pelo entendimento e pela fé. Do mesmo modo pensavam, Clemente de Alexandria (216), Orígenes (254), Eusébio de Cesareia (340) e Santo Agostinho (430), considerando que o comungante não recebe a vida física mas a vida espiritual de Cristo.- Apesar disso, na Igreja Católica, acabou por triunfar a interpretação literal, transformada em doutrina oficial da transubstanciação, pelo IV Concílio de Latrão (1215) e pelo Concílio de Trento (1545), segundo a qual, no ato da Consagração, as substânciasde pão e de vinho se transformam na substância do corpo e sangue de Cristo. Assim, o milagre eucarístico acontece no momento da consagração, realizada pelo celebrante, sem qualquer participação da assembleia, que se limita a comungar o “Corpo” de Cristo presente nas hóstias consagradas e nas quais se mantém após a celebração, guardadas e veneradas no sacrário das igrejas. Porém, esta interpretação continua a dividir os cristãos, entre os que acreditam na presença real de Cristo (católicos, ortodoxos, anglicanos) e os que consideram a Eucaristia um memorial da morte e redenção de Cristo (maioria das igrejas protestantes). A Igreja Católica considera ainda que a Eucaristia é uma repetição do Sacrifício da Cruz, opondo-se aos que interpretam a morte histórica de Jesus na Cruz como uma expiação completa e realizada de uma vez por todas...


Ora, é possível ultrapassar esta insolúvel polémica, afirmando uma "terceira via" de interpretação do mistério eucarístico, refutando a sua visão puramente literal, mas sem negar o milagre da presença real de Cristo. Para isso, importa entender a Eucaristia como um todo, englobando dois momentos sequenciais, sendo iniciada com a bênção do pão e do vinho, por parte do celebrante (representante institucional), mas só ficando completada pelo ato da comunhão, uma sequência fundamentada nos três evangelhos sinóticos e evidenciada no procedimento de Cristo, na Última Ceia: "Tomou um pão e, depois de pronunciar a bênção, partiu-o e entregou-o aos discípulos dizendo: Tomai: isto é o meu corpo. Depois, tomou o cálice, deu graças e entregou-lho. Todos beberam dele. E Ele disse-lhes: Isto é o meu sangue da aliança, que vai ser derramado por todos (Mc.14, 22-24). Nesse sentido, a díade consagração-comunhão, presente na Última Ceia, exigiria desde logo que, na atual celebração, o ato da consagração fosse de imediato seguido pelo ato da comunhão e não remetido para o final da mesma...- Mas, para lá da afirmação da Eucaristia como um todo, esta nova proposta de interpretação do milagre eucarístico envolve sobretudo a participação da assembleia cristã, estando mais centrada no ato de fé do comungante do que na fórmula da consagração, para além de ser teologicamente mais rica e valorizar o sacerdócio comum dos batizados. Esta visão é fundamentada no relato da Última Ceia, num pormenor exclusivo do evangelista Lucas, onde Jesus estabelece uma exigência final, necessária para que o milagre eucarístico aconteça, expressa na frase "fazei isto em memória de Mim": "Tomou, então, o pão e, depois de dar graças, partiu-o e distribuiu-o por eles, dizendo: Isto é o meu corpo, que vai ser entregue por vós; fazei isto em memória de Mim” (Lc.22,19). O significado da afirmação imperativa - "fazei isto em memória de mim"- torna-se mais percetível e explícita, se a substituirmos por uma proposição equivalente, seja de tipo condicional - "isto só ficará realizado (feito) se vos lembrardes de Mim"-, seja de tipo temporal - "quando fizerdes isto, deveis lembrar-vos de Mim". Ora, se a lembrança de alguém significa tornar consciente a sua presença, então a exigência de Cristo para ser lembrado pessoalmente no ato da comunhão (lembrança consciente), deve ser entendida como condição necessária para que o milagre da sua presença se verifique no interior da consciência humana. Neste sentido, a comunhão individual, deve ser entendida como o momento mais importante deste mistério, iniciado com a bênção do Pão pelo Sacerdote (representante Institucional) mas apenas consumado pelo ato de fé, interior e consciente, por parte dos comungantes, sendo a mente humana o local oculto onde o milagre eucarístico acontece, assim transformada em sacrário (único e espiritual) de Cristo neste mundo. Por isso, mais que uma celebração do sacerdote, a Eucaristia é uma concelebração de toda a assembleia reunida à volta de Cristo; mais que um “dizer” duma fórmula pelo celebrante, a Eucaristia é um “fazer” (tomai e comei) prescrito por Jesus na Última Ceia, envolvendo todos os membros da assembleia (Cristo não afirmou “dizei isto”, mas “fazei isto”…); mais que um milagre único realizado pelo poder do sacerdote (ele preside e torna legítima a celebração), a Eucaristia é um milagre de fé concretizado por Cristo, no interior da consciência de todos os que o comungam e reconhecem a sua presença divina. Em conclusão, a relação pessoal, interior e consciente, entre Cristo e o comungante, implícita no "deveis lembrai-vos de Mim", é uma condição determinante para a realização deste admirável milagre, de modo que na sua ausência (comunhão rotineira e leviana), é possível alguém ir comungar e o milagre não acontecer.


Uma interpretação semelhante da Eucaristia parece ser afirmada por S. Paulo, na sua versão da Última Ceia (1Cor.11,23), decalcada do relato do evangelista Lucas, reafirmando, por duas vezes, a expressão "fazei isto em memória de mim" e parecendo valorizar mais o ato da comunhão que da consagração, ao referir-se à imperiosa necessidade do comungante "distinguir o corpo do Senhor": "Eu recebi do Senhor o que também vos transmiti: o Senhor Jesus na noite em que era entregue, tomou pão e, tendo dado graças, partiu-o e disse: “Isto é o meu corpo, que é para vós; fazei isto em memória de mim”. Do mesmo modo, depois da ceia, tomou o cálice e disse: Este cálice é a nova Aliança no meu sangue; fazei isto sempre que o beberdes, em memória de mim… Assim, todo aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente será réu do corpo e do sangue do Senhor... pois aquele que come e bebe, sem distinguir o corpo do Senhor, come e bebe a própria condenação" (1Cor.11,24-29). Ora, como o termo "distinguir", significa "discernir intelectualmente" ou "tomar consciência de algo", então S. Paulo também parece afirmar a necessidade duma relação pessoal interior (lembrança consciente), entre o comungante e Jesus Cristo, para que o milagre da presença divina seja consumado, dizendo mesmo que quem comunga "sem distinguir o corpo do Senhor”, comunga "indignamente". Embora admitindo a possibilidade doutra leitura deste texto, a nossa argumentação parece ser justa e fundamentada.


Asim, é urgente uma nova visão da Eucaristia em que o milagre eucarístico, iniciado na benção do pão, apenas se completa no momento da comunhão consciente, valorizando o sacerdócio comum dos batizados, tornando-os concelebrantes e dignificando a interioridade humana. Porém, esta visão levanta o problema da presença real de Cristo nas hóstias consagradas que são guardadas no sacrário das igrejas, uma prática inadequada à natureza deste sacramento, pois a eucaristia é um milagre de fé interior que apenas acontece no ato duma comunhão consciente, realizada no contexto da sua celebração litúrgica. Em consequência disso, o templo vivo de Deus neste mundo é cada um dos cristãos que O recebem, sendo absurdo afirmar que Cristo permaneça vivo nas hóstias restantes da liturgia eucarística e aprisionado num sacrário material. Se Deus é Espírito, ele só pode ser recebido, guardado ou adorado em espírito (Jo.4,23-24) e o único lugar neste mundo onde isso pode acontecer é na consciência humana, um sacrário espiritual, em cujo silêncio todos o podem encontrar e louvar. Por isso, a festa do "Corpus Christi" e sua procissão, instituída pelo Papa Urbano IV na sequência do pressuposto milagre de Bolsena (1264), onde o celebrante da Missa teria visto sair sangue da Hóstia consagrada, deveria ser revista, pois distorce o significado profundo deste mistério. A Igreja tem de ultrapassar este equívoco histórico, implementando uma "revolução eucarística", de tipo coperniciano, que altera profundamente esta prática mas a engrandece muito mais. Assim eu creio e assim adoro Jesus Cristo!


Por outro lado, se esta nova visão do sacramento da Eucaristia dignifica o sacerdócio comum dos batizados, o acesso à comunhão também deverá exigir certa maturidade humana e cristã, situando-o na adolescência ou mesmo na juventude e prolongando o Batismo para idade superior, de modo a ser recebido de forma consciente. Será igualmente necessário alterar a estrutura desta celebração, conferindo maior centralidade à mesa eucarística (assembleia em semicírculo), dotando-a de maior dinâmica participativa, enriquecendo-a com a participação oral da assembleia, aberta ao testemunho dos participantes, à música e cultura jovem, situando os principais momentos de oração a Deus para depois da Comunhão, a qual que deveria constituir o momento central da celebração...- Finalmente, é necessário transformar o momento penitencial, já existente na Eucaristia, em verdadeiro sacramento do Perdão, pois, se o pecado faz parte da vida humana, a Eucaristia, enquanto celebração da vida divina, deve ser também espaço de reconciliação com Deus, extinguindo a desacreditada confissão auricular, apenas instituída no Concílio de Latrão (1215), a qual, segundo o teólogo dominicano Bento Domingues, muito tem contribuído para a desvalorização da Eucaristia: “Se a porta é o Batismo, o mais importante dos sacramentos é a Eucaristia, que é também o grande sacramento da confissão dos pecados, da misericórdia e do perdão de Deus... Certas práticas da confissão não foram apenas grandes crimes do ponto de vista cristão, foram também uma constante e infame desvalorização da Eucaristia como sacramento do perdão”.(Público,13/01/2008). Em nossa opinião, a confissão auricular deve ser abolida por violar a liberdade individual e o direito à intimidade pessoal, à qual só Deus devia aceder; ela pode bem ser substituída pela confissão pública existente na atual Eucaristia, sendo valorizada e reestruturada!


CONCLUSÃO - A nova interpretação da Eucaristia, aqui desenvolvida, não pretende retirar legitimidade à doutrina oficial da Igreja, mas afirmar uma possível doutrina alternativa da presença real de Cristo na Eucaristia, o principal mistério da espiritualidade cristã. Mesmo significando uma rutura com a prática tradicional, a Igreja não deve ter medo de aceitar uma mudança que está fundada no Evangelho, reforça a espiritualidade cristã, valoriza o estatuto do Povo de Deus e pode contribuir para a unidade dos cristãos! Jesus Cristo está vivo entre nós e renovará a sua Igreja! Assim o espero!



JOSÉ LEMOS PINTO -Ovar, 04/04/2020

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