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UMA IGREJA DEMOCRÁTICA 

Aquele que deve ser posto à cabeça de todos, deve ser eleito por todos.  (Papa S. Leão Magno, séc. V)

A eleição autocrática do Papa é evangelicamente ilegítima e uma usurpação grave ao Povo de Deus!

Hoje, nenhuma Sociedade moderna consegue atingir os Objectivos principais sem a participação e motivação de todos os seus membros. Este princípio básico das democracias participativas, já está claramente consignado nos Evangelhos, quando Jesus Cristo insiste várias vezes junto dos Apóstolos, preocupados com a futura chefia do grupo, que o mais importante da sua Igreja não eram eles próprios mas a Comunidade de que eram servidores. De facto, a questão do exercício do poder, fulcral nas organizações humanas ao longo da história, também acabaria por envolver o restrito grupo dos Apóstolos que andavam preocupados com a anunciada partida de Cristo (mesmo não sabendo como isso iria acontecer), discutindo ocultamente entre eles a questão da sucessão e obrigando Cristo a intervir várias vezes, no sentido de os preparar para um novo modelo de exercer o poder na sua organização. Foi assim numa primeira discussão dos apóstolos sobre qual deles seria o maior, quando, a caminho de Cafarnaum, aí chegados, Jesus lhes perguntou:" Que discutíeis pelo caminho? Ficaram em silêncio, porque tinham discutido pelo caminho, uns com os outros, qual deles seria o maior. Sentando-se, chamou os doze e disse-lhes: se alguém quer ser o primeiro seja o último de todos e o servo de todos" (Mc.9, 33-37). Semelhante foi a resposta de Jesus, no episódio dos filhos de Zebedeu (Tiago e João) que se aproximaram dele com um estranho pedido, indignando os restantes apóstolos: "Mestre, queremos que nos faças o que te pedimos... Concede-nos que, na tua glória, nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda... Os outros dez, tendo ouvido isto, começaram a indignar-se contra Tiago e João. Jesus chamou-os e disse: Sabeis que os chefes das nações fazem sentir o seu domínio sobre elas  e os grandes a sua autoridade. Não seja assim entre vós; quem quiser ser grande entre vós, será vosso servo, e quem quiser ser o primeiro entre vós, será escravo de todos" (Mc.10,41-45 / Mt.20,24-28). Cristo chegou mesmo a dar exemplos concretos do que pretendia de seus apóstolos, quando, num discurso denunciando o comportamento de escribas e fariseus, proibiu os seus discípulos de agirem como eles:


  • Gostam de ocupar o primeiro lugar nos banquetes e os primeiros assentos nas sinagogas, gostam das saudações nas praças públicas e de serem chamados "Rabbi" pelos homens. Vós, porém, não vos deixeis tratar por "Rabbi", porque um só é o vosso Mestre e vós sois todos irmãos. Na terra não chameis a ninguém vosso "Pai", porque um só é o vosso pai, o Pai celeste. Nem vos deixeis tratar por "Doutores", porque um só é o vosso doutor, Cristo. Aquele que for o maior entre vós será o vosso servo. (Mt. 23, 6-12).


Mas, apesar de tudo o que lhes fora dito, os apóstolos persistiam em discutir a liderança, mesmo no decorrer da Última Ceia, tendo Cristo aproveitado o exemplo duma refeição à mesa, para terminar de vez com a prolongada querela. O episódio da "refeição à mesa", apenas narrado pelo evangelista Lucas, já no decorrer da Última Ceia, é a primeira grande definição do Poder como Serviço aos outros, o paradigma da democracia participativa, invertendo o velho modelo da pirâmide hierárquica:


  • Levantou-se entre eles uma discussão sobre qual deles seria o maior. Jesus disse-lhes: Os reis das nações imperam sobre elas e os que nelas exercem autoridade são chamados de benfeitores. Convosco não deve ser assim; que o maior entre vós seja como o menor e aquele que mandar como aquele que serve. Pois qual é o maior? O que está sentado à mesa ou o que serve? Não é o que está sentado à mesa? Ora, eu estou no meio de vós como aquele que serve. (Lc.22,24-27).


Sendo consensual que os que estão sentados à mesa são mais importantes do que aqueles que servem, Cristo define os seus apóstolos como os que servem e não como os que são servidos. Porém, é necessário tirar a conclusão, implícita neste episódio e que a Igreja tem ignorado nos últimos séculos. Ora, se os mais importantes são os que estão sentados à mesa e não os que servem, isso implica a dependência intrinseca dos que servem (hierarquia) em relação aos servidos (comunidade cristã), seja no âmbito do seu processo de escolha, seja no âmbito da avaliação do serviço, não fazendo sentido que os servidores da Igreja (hierarquia) se auto-escolham autocraticamente no exercício do poder, ignorando por completo a vontade dos senhores que servem (Povo de Deus) e nos quais reside toda a autoridade que lhes foi outorgada por Cristo. 


Apesar deste novo mandamento evangélico não ter sido compreendido pelos Apóstolos e pela sociedade daquele tempo, ele foi assimilado pelas primeiras Comunidades cristãs que funcionaram de modo participativo. O grande exemplo foi logo dado por S. Pedro, na primeira Comunidade de Jerusalém (120 pessoas), reunida para substituir a vaga do apóstolo Judas (o traidor) e cujo processo foi conduzido de forma genuínamente democrática (Act.1,15-26). Com efeito, o apóstolo Pedro que presidia à Assembleia, recusou ser ele a nomear o substituto de Judas e pediu à Comunidade para fornecer dois nomes dentre eles, sendo indicados José e Matias. Em seguida, continuando a prescindir do seu poder, pediu a todos para orarem, promovendo depois um sorteio, através do qual foi escolhido Matias. As comunidades cristãs funcionaram de modo democrático e participativo, ao longo dos primeiros séculos da Igreja, sendo a Assembleia o órgão máximo de todas as decisões. O teólogo dominicano Bento Domingues, em texto publicado no Jornal "Público", refere alguns dados históricos dessa prática:


  • Segundo o costume mais antigo da Igreja, isto é, da assembleia cristã, o direito e a autoridade não residiam só na hierarquia. Nos primeiros tempos, quando havia problemas, era dada a palavra a todos para a sua solução. Ainda em meados do século III, Cipriano, bispo de Cartago, escrevia: desde o princípio do meu episcopado determinei não tomar nenhuma resolução, por minha conta, sem o vosso conselho e o consentimento do meu povo. Esta prática era observada na nomeação dos bispos e papas. S. Leão Magno (séc. V) disse com precisão: aquele que deve ser posto à cabeça de todos deve ser eleito por todos...


Este modelo perdurou na Igreja até cerca do séc. IV, quando o Imperador pagão Constantino Magno (272-337), após uma importante vitória militar (312), se converteu à nova religião, reconhecendo oficialmente o cristianismo como religião (Edito de Milão, 313). A partir daí e à semelhança da maioria dos regimes políticos antigos, a Igreja organizou-se segundo o modelo do poder absoluto, hierárquico e autocrático, assim sintetizado pelo teólogo Anselmo Borges:


  • Ao princípio da democracia, a Igreja contrapõe uma monarquia absoluta. Na sociedade civil, aos dirigentes aplicam-se denominações funcionais: ministros, reitores, diretores, mas na Igreja, o Código do Direito Canónico continua com categorias quase ontológicas: são "Superiores" e até "Superiores Maiores", o que implica que os outros são "inferiores". Jesus tinha dito: "sois todos irmãos". Mal um padre é nomeado bispo, fica o seu nome próprio precedido de "Dom" (abreviatura de Dominus, Senhor), título senhorial antiquado. (Jornal DN, 22/09/2007).


A permanência deste modelo caduco, assume hoje extrema gravidade, pois, enquanto as sociedades ocidentais, a partir do Séc. XVIII, evoluíram para Modelos Democráticos, a Igreja ficou agarrada ao modelo da pirâmide hierárquica, perdendo a grande oportunidade de também se renovar e transformando-se numa gigantesca organização autocrática que ignora os direitos fundamentais do Povo de Deus. Numa sociedade em que a democracia se generalizou na maioria dos povos, é inaceitável que a Igreja continue presa a um sistema contrário aos princípios do seu Fundador, ignorando o mandamento evangélico, segundo o qual a escolha dos servidores é sempre da competência dos que estão sentados à mesa. Por isso, o atual modelo hierárquico de poder, em que o Papa nomeia Cardeais que, por sua vez, escolhem o Papa, sem qualquer participação do Povo de Deus, está viciado à partida, é evangelicamente ilegítimo e inválido, existindo uma minoria eclesiástica (cerca de 300 cardeais), que se perpetua no poder, funcionando em círculo fechado, sem prestar contas nem ser avaliada pela esmagadora maioria dos batizados (cerca de um bilião e trezentos milhões), que constituem a Igreja de Cristo e representam o Povo de Deus! Assim, é necessária uma mudança de tipo coperniciano, invertendo a pirâmide hierárquica, em cujo topo deve estar o Povo de Deus, segundo legitimidade atribuída por Cristo (Luc.22,24-27), nele residindo todo o poder da Igreja e o direito de eleger universalmente o Papa, tornando a sua eleição autocrática evangelicamente ilegítima e uma usurpação grave ao Povo de Deus!



JOSÉ LEMOS PINTO -Ovar, 04/04/2020

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